quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Por uma vigília cívica em socorro ao povo Guarani-Kaiowá
Estive com os Guarani-Kaiowá, em Aty Guasu realizada de 13 a 17, na aldeia Yvy Katu, município de Iguatemi, em Mato Grosso do Sul. A Aty Guasu reuniu cerca de 350 lideranças Guarani-Kaiowá e convidados – entre eles, lideranças Terena e pequena delegação Guarani da Bolívia; antropólogos, representantes da Funai, do Ministério Público e da Advocacia Geral da União, além da senadora Marina Silva e alguns devotados aliados. Cheguei a Ivy Katu no dia 13 e saí à noite do dia 16, depois de anunciada a decisão das lideranças naquela assembléia indígena.

É a construção dessa decisão que me sinto na obrigação de relatar, com extrema preocupação, à sociedade brasileira do século 21.

Durante três dias as lideranças Kaiowá expuseram a realidade de cada comunidade ali representada e questionaram seus convidados sobre as possibilidades ao alcance de cada qual na solução da extrema precariedade em que vivem cerca de 40 mil pessoas daquele povo no Mato Grosso do Sul: as poucas reservas estão em áreas ambientalmente degradadas, são pequenas e abarrotadas de gente, sem as condições mínimas de existência digna – ainda menos conforme os costumes e tradições Guarani-Kaiowá; outras áreas, demarcadas e homologadas mais recentemente, encontram-se igualmente degradadas e ainda invadidas por fazendas monocultoras de cana, soja ou gado, obrigando a comunidade indígena ao confinamento em seu próprio território; outros grupos Kaiowá estão distribuídos em 23 acampamentos – sendo 21 na beira de estradas federais que cortam o Mato Grosso do Sul.

Visitei um desses acampamentos, quando viajava de Campo Grande a Iguatemi. Eram os despejados mais recentes: 132 pessoas – 60 crianças, outros tantos jovens, mulheres grávidas, idosos e um pequeno grupo de homens adultos. Abrigadas sob precaríssimas barracas feitas de galhos quaisquer, cobertas por plásticos sobrepostos, as pessoas se misturam ao que restou de suas roupas e utensílios, sob calor intenso durante o dia, o frio da noite e o desespero nas noites de chuva e vendaval comuns neste período. Não têm água nem lenha para cozinhar o que recebem de doação da Funai. Não têm paz ou segurança, sob constante vigilância e provocação de pistoleiros e seus patrões em torno do acampamento. À noite, tiros de armas de fogo vez por outra alternam com o ronco dos caminhões que trafegam pesados em direção ao Sul industrial do País: cana para fabricação de biocombustível; soja para alimentar o gado europeu – co-exportação de água e minério em grão. Tudo cultivado e colhido sobre crime ambiental que contabiliza apenas 7% do cerrado remanescente à monocultura agropecuária (que sequer alimenta a população brasileira). Produtos do crime, em grande parte comercializados pela Petrobrás e financiados pelo BNDES, para entusiasmo do governo estadual. Incômodos sob as rarefeitas matas ciliares das fazendas, incômodos ao DNIT na beira das estradas, os Guarani-Kaiowá despejados não têm acolhimento em lugar algum – sem nada de seu, além da própria vida.

Essa realidade está posta em grave escala, sob a luz do sol, em área pública. Em alguns casos, estão assim expostos há anos, como legiões de gente absolutamente indefesa, covardemente esbulhada – e, apesar de tudo, invisível.

Na reunião das lideranças, em Yvy Katu, cada um dos oradores indígenas expôs, além da situação de sua comunidade, suas ponderações e uma mesma determinação final. O conjunto das ponderações, em português inculto, esfregava em nossa cara pálida a dimensão de nossa ignorância:

“Eu só queria falar com o juiz que assinou o despejo de minha comunidade. Eu preciso muito perguntar pra ele se, quando mandou nós embora, ele pensava de nós ir pra Portugal ou pra Espanha. Porque nós não veio de lugar nenhum, nós é daqui e nós não tem pra onde ir”.

“Os brancos não sabem que, depois que Deus fez esta terra e botou água nos rios, fez a mandioca e o índio. Por isso o índio é a praga da terra: onde se mata 10, vai nascer 100”.

“O branco pensa que é dono do mundo. Pensa que sabe tudo? Mas ele não sabe de nós, porque chegou ontem. Como poderia saber de nós? Eu já comi a terra que vai me comer – muitas vezes.”

“As autoridades e as leis diz que tem de indenizar o fazendeiro pelas benfeitorias que fez. Que benfeitoria que ele fez? Acabou com a mata e os bichos que viviam nela, secou os rios, envenenou a terra. Fez casa e cerca com a madeira da mata que derrubou pra muito mais que o permitido na lei do próprio branco e ainda matou os índios. Cadê as benfeitorias? O branco tinha de pagar indenização pelos índios que esbulhou, humilhou e matou, além de todo mal que fez pra natureza. E essa indenização devia de ser aplicada no apoio pra quem precisa curar a terra, limpar os rios e refazer suas casas.”

“A cultura do branco é a cultura da enganação. Por isso tem de botar tudo no papel – mas o papel também derrete. O filme dele é sempre assim: o governador mente, o candidato promete, o advogado inventa e o juiz assina. Pura enganação o tempo todo”.

Cada um dos convidados, por sua vez, confessou que não dispõe de meios para alterar o quadro desolador em que vivem essas populações. Cada um dos convidados, a seu modo, reafirmou sua solidariedade, mas também a convicção de que só os índios podem transformar seu destino, sensibilizando a sociedade brasileira para a sua luta, de modo que, juntos, constranjam as autoridades a cumprirem com justiça e devidamente suas funções públicas e as leis.

Enquanto construíam as conclusões de sua Aty Guasu, os oradores indígenas montaram um discurso unânime, feito da soma de expressões mais ou menos assim:

“Disseram que é nós que tem de resolver, não foi? Então nós vai resolver com o único recurso que nós ainda tem.
Avisa lá que nós vai dar um prazo de 30 dias pro governo garantir o trabalho dos tropólo (antropólogo) nas áreas e concluir os estudo que o juiz exige pra nós ter o direito de ficar na sombra da mata, perto do rio, onde ainda tem água, lenha e alguma pouca caça pra nós ir passando enquanto espera a Justiça resolver o resto.
Avisa lá que, se não tiver tropólo nas áreas, em 30 dias, nós vai entrar nos 32 tekohá (terra de origem) com nossos maracá. E, como nós não pode contra as armas dos pistoleiros, nós vai morrer lá mesmo – pode até mandar as máquina escavadeira só pra enterrar nós lá. Porque, se há de nós viver morrendo, escondido atrás do medo, perdido no meio do mundo, nós vai morrer no nosso tekohá. Se não dá pra viver lá, é lá que nós quer morrer e ser enterrado. Porque quem morre pela justiça e o bem é acolhido pelas mão de Deus na eternidade. Vocês avisa lá que o único recurso que nós ainda tem é a nossa vida. Mas o bem do nosso povo é a razão da nossa vida. Esse bem é tão precioso que morrer por isso ainda é pouco”.

Este é o terceiro milênio, o século 21, nós não estamos em 1500. Mas, não nos iludamos, a nossa atitude em relação aos povos originários deste continente ainda é a mesma com que os colonizadores europeus dizimaram 1 milhão de pessoas por século, desde o “descobrimento”. E digo nós, porque os que não o fazemos diretamente, o fazemos por omissão – quem cala consente; ou por consumo do etanol e da carne produzidos sobre o crime ambiental e o genocídio; ou pelo voto displicente nos promotores da injustiça. Extinguimos não apenas biomas, biodiversidade, recursos minerais. Exterminamos povos, culturas, saberes, fazeres, experiências milenares. Disseminamos miséria e escassez sobre a abundância, sob a mesma justificação, desde 1500. Só a tecnologia se transformou – em muitíssimo mais ágil –, hoje capaz de concluir em dias um processo que, outrora, consumiu séculos.

Confesso que me lembrei da Copa de 2016 e das Olimpíadas de 2014 – os custos da recepção ao mundo, o orgulho do povo brasileiro, a síndrome dos campeões... Confesso que minha cara pálida ficou vermelha de vergonha.
É necessário sensibilizar a sociedade brasileira para o grau da covardia e a gravidade do que se executa contra aquelas populações indefesas e contra nós todos, em nome do progresso e do desenvolvimento – de quem mesmo?

Áurea Lúcia
(servidora pública – Brasília/DF)

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