Índio, todos os dias
Ter, 07 Abr, 11h25
Por Júlia Magalhães, especial para o Yahoo! Brasil
Fotos: Michel Blanco
Quem nunca ouviu falar no Curupira e no Saci? Nem conhece mandioca, guaraná, tapioca, ou nunca deitou numa rede? Esses são elementos da cultura indígena reconhecidos como parte da identidade nacional. Em 19 de abril comemora-se o Dia do Índio, mas há pouco o que festejar nos mais de 500 anos de contato. No Brasil, vivem mais de 500 mil índios em aldeias. São 220 etnias e 185 línguas diferentes. Mas a sociedade brasileira pouco compreende a realidade deles - por falta de informação ou preconceito.
É o que afirma Betty Mindlin, antropóloga e autora de "Diários da Floresta" (Editora Terceiro Nome), lançado em 2006 e recentemente traduzido para o francês. Ela fala da complexidade da vida social, da organização econômica, da cultura e das relações de afeto dos índios e iniciou sua primeira grande pesquisa com o povo Suruí, de Rondônia, no fim da década de 1970.
Assim como outras etnias brasileiras, os Suruí passaram por transformações intensas nos últimos 30 anos. "Não há nada que seja estático e não podemos querer que os índios não sofram influência de uma sociedade dominante. Eles estão sujeitos a isso, às religiões proselitistas", explica Betty. "Se por um lado observo coisas fantásticas, pois hoje eles falam por eles mesmos, estão organizados, por outro essa questão da religião me entristece. Os pajés estão calados por força de uma lavagem cerebral", conta.
Mesmo com dificuldades, a população indígena brasileira cresce atualmente acima da média nacional, com índices de cinco e seis por cento ao ano. Mas a pressão pela integração à sociedade e a visão preconceituosa marcam o modo como a questão é tratada no País. "Muita gente tem dificuldade de nos entender porque ainda guarda a imagem antiga do índio nu, que não falava português. Hoje, temos contato com a tecnologia da sociedade não-indígena. São relógios, carros, computadores, telefones...
Mas nem por isso deixamos de ser índios, pois temos a tradição", avalia Cipassé Xavante, cacique da aldeia Wedera, na terra indígena Pimentel Barbosa, em Mato Grosso.
Cipassé trabalha para mudar essa percepção. "Trabalhamos com crianças e professores em escolas da região e damos palestras para estudantes universitários. A educação deve informar e o povo brasileiro não sabe, não tem informação. Esse é um exemplo de troca".
O que é ser índio?
A Organização das Nações Unidas (ONU) define como indígenas aqueles povos nativos que não se amalgamaram nos processos civilizatórios. Essa definição, no entanto, é insuficiente, embora sirva de base para discussões em âmbito internacional - caso da Declaração Universal dos Povos Indígenas, aprovada em 2007 por 143 países, incluindo Brasil, e que agora conta com a posição favorável da Austrália, até então opositora do texto, juntamente com Estados Unidos, Canadá e Nova Zelândia.
No Brasil, índio é aquele que preservou um sentido de comunidade e de lealdade a um passado mítico, "que não é necessariamente um passado histórico", afirma Mércio Gomes, antropólogo e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), onde ficou de 2003 a 2007.
"Nos EUA, é índio quem tem 1/124 de sangue indígena. Na Bolívia, essa questão é um pouco semelhante ao Brasil, e ser identificado como índio depende de especificações e preservações de características comunitárias", explica. Para Mércio, o modo de ser dos povos brasileiros está extremamente conectado com a relação que estabelecem com a terra.
A líder indígena e socióloga Azelene Kaingang, do Paraná, concorda e questiona a visão que não-indígenas têm do território. "A sociedade em geral pensa na terra com a visão do valor monetário: quanto vale a terra para compra e venda? Para os povos indígenas, a terra é a referência de identidade".
Formada pela PUC do Paraná e funcionária da Funai em Brasília, sempre que pode vai à aldeia e pretende, em breve, voltar para ficar de vez. Ao definir o índio no Brasil hoje, dá a seguinte declaração: "Ser índio no Brasil é se sentir pequeno, se sentir diminuído frente aos direitos dos cidadãos brasileiros. Somos sujeitos de juízo e de pensamento. Isso é história, não é passado. Estamos sofrendo um processo de recolonização." Azelene refere-se ao julgamento da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal (STF), em 19 de março desse ano, que culminou na determinação de 19 condicionantes para novos processos de regularização fundiária.
Uma vida plena de sentidos
Betty Mindlin lembra da história de Pedro Agamenon Arara, em Rondônia, que passou mais de 30 anos sem saber que era índio. Ameaçada, a mãe de Pedro fugiu da aldeia quando ele ainda era pequeno e nunca ensinou a língua e os costumes. A antropóloga conta que ele redescobriu as raízes e hoje é um dos líderes de seu povo. Histórias como essa repetem-se por todo o Brasil. "Não há caminho curto para o fim da injustiça social. Mas esses princípios devem estar na educação das crianças, na escola. A história de Pedro é a história do povo brasileiro", fala Betty, que entende a decisão do STF como um retrocesso.
"Não vejo porque é tão difícil para a sociedade entender os povos indígenas. É como a poesia de Cecilia Meireles: Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda..."
Curiosidades
» Muitos índios têm um nome "branco" e um indígena. O sobrenome, muitas vezes, identifica a etnia a qual pertencem. Assim, Azelene é da etnia Kaingang, do Paraná, e Cipassé, Xavante de Mato Grosso.
» Mesmo que pareça estranho, uma convenção da Associação Brasileira de Antropologia estabelece que não se faz uso de plural para nomes de etnias. Portanto, falamos em "os Suruí".
» Segundo dados oficiais da ONU, são cerca de duas mil etnias e 370 milhões pessoas que se consideram indígenas no mundo.
» Atualmente, as terras indígenas compõem cerca de 13% do território nacional.